O dia em que Jeferson matou sua saudade

Texto escrito por Daniel Moretti contando a sua primeira experiência como voluntário do SP Invisível

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O dia em que Jeferson matou sua saudade

Sentado, apoiado na parede que leva a uma das saídas da estação República do metrô, avistamos nosso terceiro entrevistado do dia. Estava sozinho e tinha ao seu lado um carrinho de feira com, imagino eu, todos seus pertences: um cobertor, um par de tênis, latas de cerveja vazias e uma garrafa de pinga já pela metade. Ele nos recebeu com um sorriso no rosto e falando inglês, you know?

– Hello, my friends, nice to meet you!

A conversa seguiu num clima descontraído entre o inglês e o português do nosso anfitrião, que confessou ter usado todo seu conhecimento na língua estrangeira até ali e nos disse seu nome: Jeferson.

– Quer saber minha história? Então, me faz um favor? Procura aí no Google por ‘La Licorne Hercílio Paiva’. Rapidamente, os olhos de Jefferson se encheram d’água e ganharam uma tonalidade vermelha. O que quer que fosse aquele nome, com certeza trazia muitas emoções à tona.

Estava na metade do meu primeiro e único trabalho no SP Invisível até aqui e já me sentia desafiado — sem ter ideia da intensidade da história que nos aguardava. De certo, ouvir e compreender pessoas com quem você não conversa normalmente por mais de um minuto é uma experiência e tanto. É ótimo, ao mesmo tempo em que dói na alma pela certeza de que falhamos como sociedade.

Enfim, conseguimos encontrar a foto e a história desejada por Jeferson. O homem que atende pelo nome de Hercílio Paiva era seu pai, dono da La Licorne, um prostíbulo muito famoso há algumas décadas em São Paulo.

Jeferson chorou. E agradeceu por termos ajudado a rever seu pai, homem que descreveu como elegante, muito rico e que disse admirar pela maneira respeitosa como tratava as pessoas.

– Infelizmente, foi com ele que eu aprendi a cheirar cocaína e com a minha mãe que aprendi a beber. É errado eu falar pra vocês que eu sou alcoólatra? De uma conversa entre cinco pessoas, o encontro ganhou cara de monólogo. Deixamos ele livre.

Por vezes, enquanto contava como foi parar nas ruas de São Paulo, Jeferson procurava resposta para nossa presença ao lado dele. Por que nós, um grupo de quatro pessoas, havíamos parado para ouvi-lo? O que poderia haver de tão interessante nas palavras de um viciado e sem nada na vida? Ele questionava. Não só ele, mas quem passava pelo local deveria pensar o mesmo. Era perceptível os olhares curiosos dos que iam e vinham.

Jeferson continuou a nos contar o que tinha o levado até ali, naquele momento.

— Eu tinha tudo e eles tiraram toda a minha herança. Só não tiraram minha vida porque eu já estava miserável. O que uma pessoa como eu poderia fazer?

Rapidamente, os olhos de Jefferson se encheram d’água e ganharam uma tonalidade vermelha.

As lágrimas escorriam pelo rosto de Jeferson, denunciando o pico mais alto da emoção. Passou a detalhar a relação com o pai à medida que lembrava a maneira como perdeu tudo. Foi a família, lembro dele relutante em nos revelar, foram os próprios familiares que tomaram o que era dele por direito. Ele contou ainda que o pouco que restou, a droga fez questão de arrancar.

O silêncio, que imperava entre todos nós que ouvíamos a história, só era quebrado por uma ou outra brincadeira feita pelo próprio Jeferson, mesmo diante de tanto sofrimento.

Chegou a gravar um recado, mais como um conselho bem-humorado, em um vídeo para a página do SP Invisível no Instagram.

– “Você respeita seu pai e sua mãe, ou você vai se foder”, disse rindo e arrancando mais risadas.

A conversa se estendeu por algum tempo. Ficamos lá por mais de uma hora, na tentativa de conhecer melhor esse cara incrível que demos a sorte de encontrar.

Ao final, ele decidiu expor toda sua gratidão pela conversa. Aliás, Jeferson não foi o único. Agradecimentos por estarmos dispostos a ouvir foram recorrentes durante as mais de três horas que passamos só ali na Praça da República — manifestados através de sorrisos, abraços ou com um simples ‘obrigado’. Cada qual a sua maneira.

– Vocês fizeram um bem tremendo pra mim! Antes, eu tinha vergonha de chorar, mas um dia vi que até Jesus chorou. Obrigado por deixarem eu derramar minhas lágrimas, é a única maneira da minha dor ir embora.

Nós que agradecemos, Jeferson.

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